Não sejas o de hoje

 
 
Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade...
É a eternidade.
És tu.
Cecília Meireles
In ‘Cânticos’

Inesperadamente

 


INESPERADAMENTE
a noite se ilumina:
que há uma outra claridade
para o que se imagina.


Que sobre-humana face
vem dos caules da ausência
abrir na noite o sonho
de sua própria essência?


Que saudade se lembra
e, sem querer, murmura
seus vestígios antigos
de secreta ventura?


Que lábio se descerra
e – a tão terna distância! –
conversa amor e morte
com palavras da infância?


O tempo se dissolve:
nada mais é preciso,
desde que te aproximas,
porta do Paraíso!


Há noite? Há vida? Há vozes?
Que espanto nos consome,
de repente, mirando-nos?
(Alma, como é teu nome?)
Cecília Meireles

O tempo não conhece

 
 
 
O tempo não conhece a natureza,
não trabalha, nem tem idade,
o tempo não da moleza,
ao longo da eternidade.
O Tempo não para no porto,
não faz acordos com ninguém,
não apita na curva,
e jamais, espera alguém. 

 *Angelo Sansivieri *

Bilhetes

 
Bilhetes
Alguns escrevem pela arte,
pela linguagem,
pela literatura.
Esses, sim, são os bons.
Eu só escrevo para fazer afagos.
E porque eu tinha de encontrar um jeito
de alongar os braços.
E estreitar distâncias.
E encontrar os pássaros:
há muitas distâncias em mim
(e uma enorme timidez).
Uns escrevem grandes obras.
Eu só escrevo bilhetes para escondê-los,
com todo cuidado,
embaixo das portas.
 
*Rita Apoena*